PET Biologia UFV

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Programa de Educação Tutorial - Biologia UFV

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Seminário: Cultura Animal Não Humana

 Petiano: Jefferson Fernandes Junior

Por muito tempo, a ciência buscou entender as barreiras que distanciam os seres humanos dos demais animais do planeta. Umas das características que por muito, e ainda hoje, é considerada exclusiva dos seres humanos é a cultura.

Contudo, estudos recentes nas áreas da etologia e da antropologia apontam e vem tentando entender processos peculiares realizados por animais não humanos, que podem ser entendidos como cultura.

Mas o que é cultura? A Cultura é um termo difícil de definir por ser amplo e complexo. A definição mais utilizada para cultura é: "todo aquele complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes e todos os outros hábitos e capacidades adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade" (Tylor, 1871, P. 01).


Dessa definição, a parte mais relevante para nossa discussão é o final, pois é dela que surge a ideia genérica do que é cultura: capacidades adquiridas como membro de uma sociedade.

O linguista Carlos Vogt apresenta uma definição que se adequa aos estudos sobre cultura animal não humana (Vogt, 2011): "...designação do processo de transmissão, por aprendizagem, do conjunto de valores e comportamentos que não só se dão na vida em sociedade mas que da sociedade precisam para se dar e transmitir."

Para os estudiosos da cultura animal não humana, a definição para a mesma é simples assim. A cultura animal não humana trata do processo de aprendizagem por meio de transmissão social.para os estudiosos da cultura animal não humana, a definição para a mesma é simples assim. A cultura animal não humana trata do processo de aprendizagem por meio de transmissão social.

Comportamento? Repetição? Cultura?

Os estudos sobre cultura animal não humana passam por muitas críticas e questionamentos. O mais comum deles é como é possível saber que os animais não humanos estão de fato aprendendo algo e não, simplesmente, reproduzindo um comportamento natural.

O primatologista Frans de Waal, em seu livro, “The Ape And Sushi Master”, de 2001, defende que a cultura, diferente do comportamento, não é adquirida geneticamente.

Nessa mesma obra, Waal rebate críticas que insinuam que o processo observado em macacos não é aprendizado e, sim, repetição. Waals defende que: se o processo de aprendizado de um iniciante a sushiman se dá pela observação e repetição de técnicas até seu aprimoramento e isso é chamado de cultura,então,  o fato dos animais aprenderem repetindo e aprimorando técnicas também é um exemplo de que os mesmos estão aprendendo culturalmente (Wals,2001).

Waals em uma palestra sobre comportamento de chimpanzés na universidade de Berkeley .Fonte: Berkeley News


    O etólogo Eduardo Ottoni, em uma entrevista ao canal Bio’s Fera, em agosto deste ano, confirma que a distinção do comportamento e cultura ocorre por processos de exclusão, onde primeiramente se observa se tal comportamento é comum a toda uma espécie, ou a grupos isolados dentro dessa espécie.

Os estudos de longa duração de Harald Yurk também o levaram a conclusões semelhantes. Durantes os muitos anos que Yurk passou observando baleias, pode perceber que grupos de diferentes regiões apresentam dialetos únicos. De acordo com seus estudos, as orcas de um grande grupo utilizam um dialeto de 7 a 17 chamados distintos, os quais não poderiam ser geneticamente codificados, visto que, não são dialetos comuns a todos os animais da espécie e que dentro de um grupo, a maior parte dos indivíduos têm diferentes pais, mas utilizam o mesmo dialeto.

Seus estudos também colaboraram com observações que levam a crer que os cetáceos mais velhos, principalmente as mães, incentivam os filhotes em novas técnicas de defesa e caça, que são observadas em seu próprio grupo.

Fonte:The National Wildlife Federation

 

Animais Culturais

Desde que Jane Goodall afirmou, em 1960, que os chimpanzés, tais quais os seres humanos, eram capazes de utilizar ferramentas, muito se discutiu sobre o que nos tornava distintos dos outros primatas. Desde então, a primatologia já propôs até que os chimpanzés realizam jogos políticos dentro de seus grupos, e, por muito tempo, se pensou que apenas os grandes primatas tinham essa capacidade de usar ferramentas.

Fonte: Smithsonian Magazine

Porém, os estudos de Eduardo Ottoni mostraram que os pequenos macacos-prego, macacos do novo mundo, aprendiam, em grupos estruturados, a quebrar cocos com auxílio de pedras pontudas.

Fonte: Jornal da USP

Fonte: TecMundo

Estudos com corvos da Nova Caledônia, consideradas aves de muita inteligência, evidenciaram que além de usar ferramentas, esses animais as criam e adaptam, usando ramos de vegetação. Eles também são capazes de produzir ganchos para caçar insetos. A prática de construção de ganchos era comum apenas à nossa espécie.

Fonte: Laifi

Fonte: G1

A questão cultural em manadas de elefantes foi estudada pela etóloga Joyce Poole, escritora do livro “Coming of Age with Elephants - A memoir”. Ela afirma que “Eles (elefantes) têm todos os traços de uma sociedade bem estruturada. Têm liderança, comunicação, cooperação, busca de consenso, respeito pelo outro e capacidade de reconciliação” (Poople.1996), que são traços ensinados pela matriarca aos demais membros da manada, incluindo os filhotes. 



Fonte: MegaCurioso

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Além de possuírem dialetos específicos, muitas baleias desenvolvem formas de caça única entre elas. Alguns grupos de jubarte, no golfo do Maine, realizam uma técnica denominada “lobtailing”: elas batem a cauda muito forte na superfície da água antes de se alimentarem, a fim de desorientar as presas.




As orcas da costa argentina, se arriscam a encalhar na areia, para alcançar algumas focas. Nesses grupos já foi observado que os filhotes geralmente são estimulados pelas progenitoras, que os empurram até a areia, no intuito de ensiná-los a caçar dessa maneira.



Porque alguns animais são culturais e outros não?

Carel van Schaik estudou orangotangos e percebeu que quanto mais sociável o animal estudado, ou seja, quanto mais apto a relações com os outros membros do seu grupo, maior é seu grau de aprendizado. Ao observar dois diferentes grupos desses primatas, o primatologista percebeu algumas diferenças. Os animais com maior hábito gregário, orangotangos que viviam em um grande grupo, aprendiam a utilizar gravetos para alcançar a polpa suculenta de algumas frutas. Enquanto no outro grupo estudado, com animais que viviam solitários ou apenas em contato com sua unidade familiar, o mesmo costume não era observado, os orangotangos do segundo grupo não sabiam utilizar os gravetos (Schaik, 1999).


 

A resposta é muito simples: os seres humanos, diferentemente dos outros seres vivos e dos outros animais culturais, possuem uma cultura cumulativa. Isso significa que cada novo aprendizado é somado a um já existente e esse processo não é interrompido.

Assim sendo, a forma com que aprendemos permite que utilizemos um único conhecimento para a resolução de problemas diferentes daqueles inicialmente observados, pois “nosso aprendizado não volta à estaca zero”.

Fonte: TeligaNet

Problemáticas

No artigo “Primatologia, culturas não humanas e novas alteridades” Eliane Rapchan e Walter Neves ressaltam que os estudos sobre cultura não humana são recentes e precisam continuar e ser aprofundados, considerando a dificuldade de se mensurar até mesmo a cultura humana.

As três principais problemáticas são:

     a visão etnocêntrica do homem sobre a humanidade;

     a evolução e revisão de conceitos antigos;

     a logística de direitos dos animais.

Problemática 1: A visão etnocêntrica do homem sobre a humanidade

Primeiramente, o grande problema ao dizer que os animais possuem cultura é lidar com as críticas de quem acredita na superioridade do ser humano sobre as demais criaturas. Nossa aversão a ser comparados a animais, de forma geral, é histórica e cultural e, para isso não há solução senão uma educação bem estruturada.

Fonte: Medium

Problemática 2: A evolução e revisão de conceitos antigos

Sobre a revisão de conceitos, temos o exemplo de Jane Goodall, a primeira pessoa a descrever o uso de ferramentas pelos chimpanzés.

Na época de sua descoberta, Jane sofreu diversas represálias, pois, definíamos ser humano como “uma criatura capaz de utilizar ferramentas” e afirmar que os chimpanzés podiam fazer isso era nos comparar a eles.

Com o tempo, a ideia deixou de ser um disparate para se tornar um objeto para o estudo da evolução.

Isso também precisa acontecer com a ideia de cultura. Precisamos aceitar que os animais também produzem cultura e que isso não os torna indivíduos e cidadãos humanos.

Problemática 3: A logística de direitos dos animais

Afirmar que outros animais possuem cultura implicaria em revisão e possível extinção de processos de testes, aprisionamento, cárcere e caça desses seres e isso influencia muito mais nas culturas humanas do que estamos preparados para impor agora.

Um exemplo: se considerarmos que as baleias são seres culturais, imediatamente, a caça a esses animais deveria deixar de existir, o que não é tão simples, posto que é uma luta que já acontece há anos.

Fonte: GreenMe

Fonte: ANDA

Lyin Miles, a primeira pesquisadora a ensinar linguagem de sinais a um orangotango afirma que estudar a cultura animal é de extrema importância para que criemos um mundo onde os animais não sejam explorados e maltratados e para que possamos realizar enriquecimentos a ponto de construir centros de cultura animal. Para ela, na sua experiência de educar um primata na cultura humana, perceber as formas de vida inteligente no nosso próprio planeta é fundamental para construirmos um mundo mais rico e íntegro.

Fonte: DailyMail

 

Conclusão

Os estudos sobre cultura animal não humana dão importantes pistas sobre os processos evolutivos no planeta e de que a perspectiva de aprendizado social remonta de muito tempo e não surgiu com a raça humana.

Ao observarmos os processos culturais que outras espécies desenvolvem, não podemos reduzir a distância ideológica entre as diferentes formas de vida da Terra. Isto ajudará a incentivar a construção de um mundo mais íntegro e em equilíbrio e a entender o processo que nos tornou tão distinto das demais espécies.

Contudo, estudos nessa área são poucos. Questões sobre como o estudo de animais não humanos culturais influenciará na própria cultura humana precisam ser investigadas. Portanto, é muito importante que esses estudos sejam incentivados e que seja dado mais apoio e ampla divulgação aos mesmos, para que a população humana possa entendê-los com mais clareza.

 

Referências

     MAROJA, Rodrigo Cavalcante e Rodrigo. Animais: eles também têm cultura. Eles também têm cultura. 2018. Disponível em: https://super.abril.com.br/ciencia/animais-eles-tambem-tem-cultura/. Acesso em: 11 ago. 2020.

     VOGT, C. Cultura Animal. Com Ciência. 2011. Disponível em: <http://www.comciencia.br/comciencia/handler.php?section=8&edicao=73>. Acesso em: 12 ago 2020.

     CULTURA em Animais não-humanos. Realização de Bio'S Fera. [S.I]: Youtube, 2020. Son., color. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=nmmWcLT-JKg&t=6760s. Acesso em: 11 ago. 2020.

     Referência: CASTRO, Fábio de. Corvos utilizam a memória para fabricar e adaptar ferramentas, dizem cientistas. 2018. Disponível em: https://ciencia.estadao.com.br/noticias/geral,corvos-utilizam-a-memoria-para-fabricar-e-adaptar-ferramentas-diz-estudo,70002374070. Acesso em: 12 ago. 2020.

     LEVY, Sharon. The Cultural Cetacean. 2003. Disponível em: https://www.nwf.org/Magazines/National-Wildlife/2003/The-Cultural-Cetacean. Acesso em: 13 ago. 2020.

     RAPCHAN, Eliane Sebeika; NEVES, Walter Alves. Primatologia, culturas não humanas e novas alteridades. Scientiae Studia, [S.L.], v. 12, n. 2, p. 309-329, jun. 2014. FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/s1678-31662014000200005.

     VAN SCHAIK, Carel P.; DEANER, Robert O.; MERRILL, Michelle Y.. The conditions for tool use in primates: implications for the evolution of material culture. Journal Of Human Evolution, [S.L.], v. 36, n. 6, p. 719-741, jun. 1999. Elsevier BV. http://dx.doi.org/10.1006/jhev.1999.0304

     CHANTEK, the first orangutan person. Realização de Tedx. Chattanooga: Youtube, 2014. Son., color. Legendado. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=q2pisrdO2TQ. Acesso em: 11 ago. 2020.

     POOLE, Joyce. Coming age with Elephants: a memoir. Nova York: Hyperion, 1996. Disponível em: https://archive.org/details/isbn_9780786860951. Acesso em: 13 ago. 2020.


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