Petiano: Jefferson Fernandes Junior
Por muito tempo, a
ciência buscou entender as barreiras que distanciam os seres humanos dos demais
animais do planeta. Umas das características que por muito, e ainda hoje, é
considerada exclusiva dos seres humanos é a cultura.
Contudo, estudos
recentes nas áreas da etologia e da antropologia apontam e vem tentando
entender processos peculiares realizados por animais não humanos, que podem ser
entendidos como cultura.
Mas o que é cultura? A Cultura é um termo difícil de definir por ser amplo e complexo. A definição mais utilizada para cultura é: "todo aquele complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes e todos os outros hábitos e capacidades adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade" (Tylor, 1871, P. 01).
Dessa definição, a
parte mais relevante para nossa discussão é o final, pois é dela que surge a
ideia genérica do que é cultura: capacidades adquiridas como membro de uma
sociedade.
O linguista Carlos
Vogt apresenta uma definição que se adequa aos estudos sobre cultura animal não
humana (Vogt, 2011): "...designação do processo de transmissão, por
aprendizagem, do conjunto de valores e comportamentos que não só se dão na vida
em sociedade mas que da sociedade precisam para se dar e transmitir."
Para os estudiosos da cultura animal não humana, a definição para a mesma é simples assim. A cultura animal não humana trata do processo de aprendizagem por meio de transmissão social.para os estudiosos da cultura animal não humana, a definição para a mesma é simples assim. A cultura animal não humana trata do processo de aprendizagem por meio de transmissão social.
Comportamento? Repetição? Cultura?
Os estudos sobre
cultura animal não humana passam por muitas críticas e questionamentos. O mais
comum deles é como é possível saber que os animais não humanos estão de fato
aprendendo algo e não, simplesmente, reproduzindo um comportamento natural.
O primatologista
Frans de Waal, em seu livro, “The Ape And Sushi Master”, de 2001, defende que a
cultura, diferente do comportamento, não é adquirida geneticamente.
Nessa mesma obra, Waal rebate críticas
que insinuam que o processo observado em macacos não é aprendizado e, sim,
repetição. Waals defende que: se o processo de aprendizado de um iniciante a
sushiman se dá pela observação e repetição de técnicas até seu aprimoramento e
isso é chamado de cultura,então, o fato
dos animais aprenderem repetindo e aprimorando técnicas também é um exemplo de
que os mesmos estão aprendendo culturalmente (Wals,2001).
Waals em
uma palestra sobre comportamento de chimpanzés na universidade de Berkeley
.Fonte: Berkeley News
O etólogo Eduardo
Ottoni, em uma entrevista ao canal Bio’s Fera, em agosto deste ano, confirma
que a distinção do comportamento e cultura ocorre por processos de exclusão, onde
primeiramente se observa se tal comportamento é comum a toda uma espécie, ou a
grupos isolados dentro dessa espécie.
Os estudos de longa
duração de Harald Yurk também o levaram a conclusões semelhantes. Durantes os
muitos anos que Yurk passou observando baleias, pode perceber que grupos de
diferentes regiões apresentam dialetos únicos. De acordo com seus estudos, as
orcas de um grande grupo utilizam um dialeto de 7 a 17 chamados distintos, os
quais não poderiam ser geneticamente codificados, visto que, não são dialetos
comuns a todos os animais da espécie e que dentro de um grupo, a maior parte
dos indivíduos têm diferentes pais, mas utilizam o mesmo dialeto.
Seus estudos também
colaboraram com observações que levam a crer que os cetáceos mais velhos,
principalmente as mães, incentivam os filhotes em novas técnicas de defesa e
caça, que são observadas em seu próprio grupo.
Fonte:The National Wildlife Federation
Animais Culturais
Desde que Jane
Goodall afirmou, em 1960, que os chimpanzés, tais quais os seres humanos, eram
capazes de utilizar ferramentas, muito se discutiu sobre o que nos tornava
distintos dos outros primatas. Desde então, a primatologia já propôs até que os
chimpanzés realizam jogos políticos dentro de seus grupos, e, por muito tempo,
se pensou que apenas os grandes primatas tinham essa capacidade de usar
ferramentas.
Fonte:
Smithsonian Magazine |
Porém, os estudos de
Eduardo Ottoni mostraram que os pequenos macacos-prego, macacos do novo mundo,
aprendiam, em grupos estruturados, a quebrar cocos com auxílio de pedras
pontudas.
Fonte:
Jornal da USP
Fonte:
TecMundo
Estudos com corvos da
Nova Caledônia, consideradas aves de muita inteligência, evidenciaram que além
de usar ferramentas, esses animais as criam e adaptam, usando ramos de
vegetação. Eles também são capazes de produzir ganchos para caçar insetos. A
prática de construção de ganchos era comum apenas à nossa espécie.
Fonte:
Laifi
Fonte: G1
A questão cultural em
manadas de elefantes foi estudada pela etóloga Joyce Poole, escritora do livro
“Coming of Age with Elephants - A memoir”. Ela afirma que “Eles (elefantes) têm
todos os traços de uma sociedade bem estruturada. Têm liderança, comunicação,
cooperação, busca de consenso, respeito pelo outro e capacidade de
reconciliação” (Poople.1996), que são traços ensinados pela matriarca aos
demais membros da manada, incluindo os filhotes.
Fonte:
MegaCurioso
Além de possuírem
dialetos específicos, muitas baleias desenvolvem formas de caça única entre
elas. Alguns grupos de jubarte, no golfo do Maine, realizam uma técnica
denominada “lobtailing”: elas batem a cauda muito forte na superfície da água
antes de se alimentarem, a fim de desorientar as presas.
As orcas da costa
argentina, se arriscam a encalhar na areia, para alcançar algumas focas. Nesses
grupos já foi observado que os filhotes geralmente são estimulados pelas
progenitoras, que os empurram até a areia, no intuito de ensiná-los a caçar
dessa maneira.
Porque alguns animais são culturais e outros não?
Carel van Schaik
estudou orangotangos e percebeu que quanto mais sociável o animal estudado, ou
seja, quanto mais apto a relações com os outros membros do seu grupo, maior é
seu grau de aprendizado. Ao observar dois diferentes grupos desses primatas, o
primatologista percebeu algumas diferenças. Os animais com maior hábito
gregário, orangotangos que viviam em um grande grupo, aprendiam a utilizar gravetos
para alcançar a polpa suculenta de algumas frutas. Enquanto no outro grupo
estudado, com animais que viviam solitários ou apenas em contato com sua
unidade familiar, o mesmo costume não era observado, os orangotangos do segundo
grupo não sabiam utilizar os gravetos (Schaik, 1999).
A resposta é muito
simples: os seres humanos, diferentemente dos outros seres vivos e dos outros
animais culturais, possuem uma cultura cumulativa. Isso significa que cada novo
aprendizado é somado a um já existente e esse processo não é interrompido.
Assim sendo, a forma com que aprendemos permite
que utilizemos um único conhecimento para a resolução de problemas diferentes
daqueles inicialmente observados, pois “nosso aprendizado não volta à estaca
zero”.
Fonte:
TeligaNet
Problemáticas
No artigo
“Primatologia, culturas não humanas e novas alteridades” Eliane Rapchan e
Walter Neves ressaltam que os estudos sobre cultura não humana são recentes e
precisam continuar e ser aprofundados, considerando a dificuldade de se
mensurar até mesmo a cultura humana.
As três principais
problemáticas são:
●
a visão
etnocêntrica do homem sobre a humanidade;
●
a evolução e
revisão de conceitos antigos;
●
a logística de
direitos dos animais.
Problemática 1:
A visão etnocêntrica do homem sobre a humanidade
Primeiramente, o
grande problema ao dizer que os animais possuem cultura é lidar com as críticas
de quem acredita na superioridade do ser humano sobre as demais criaturas.
Nossa aversão a ser comparados a animais, de forma geral, é histórica e
cultural e, para isso não há solução senão uma educação bem estruturada.
Fonte:
Medium
Problemática 2: A evolução e revisão de conceitos antigos
Sobre a revisão de
conceitos, temos o exemplo de Jane Goodall, a primeira pessoa a descrever o uso
de ferramentas pelos chimpanzés.
Na época de sua
descoberta, Jane sofreu diversas represálias, pois, definíamos ser humano como
“uma criatura capaz de utilizar ferramentas” e afirmar que os chimpanzés podiam
fazer isso era nos comparar a eles.
Com o tempo, a ideia
deixou de ser um disparate para se tornar um objeto para o estudo da evolução.
Isso também precisa
acontecer com a ideia de cultura. Precisamos aceitar que os animais também
produzem cultura e que isso não os torna indivíduos e cidadãos humanos.
Problemática 3: A logística de direitos dos animais
Afirmar que outros animais possuem cultura implicaria em revisão e possível extinção de processos de testes, aprisionamento, cárcere e caça desses seres e isso influencia muito mais nas culturas humanas do que estamos preparados para impor agora.
Um exemplo: se considerarmos que as
baleias são seres culturais, imediatamente, a caça a esses animais deveria
deixar de existir, o que não é tão simples, posto que é uma luta que já
acontece há anos.
Lyin Miles, a primeira pesquisadora a
ensinar linguagem de sinais a um orangotango afirma que estudar a cultura
animal é de extrema importância para que criemos um mundo onde os animais não
sejam explorados e maltratados e para que possamos realizar enriquecimentos a
ponto de construir centros de cultura animal. Para ela, na sua experiência de
educar um primata na cultura humana, perceber as formas de vida inteligente no
nosso próprio planeta é fundamental para construirmos um mundo mais rico e
íntegro.
Fonte: DailyMail
Conclusão
Os estudos sobre
cultura animal não humana dão importantes pistas sobre os processos evolutivos no
planeta e de que a perspectiva de aprendizado social remonta de muito tempo e
não surgiu com a raça humana.
Ao observarmos os
processos culturais que outras espécies desenvolvem, não podemos reduzir a
distância ideológica entre as diferentes formas de vida da Terra. Isto ajudará
a incentivar a construção de um mundo mais íntegro e em equilíbrio e a entender
o processo que nos tornou tão distinto das demais espécies.
Contudo, estudos
nessa área são poucos. Questões sobre como o estudo de animais não humanos
culturais influenciará na própria cultura humana precisam ser investigadas.
Portanto, é muito importante que esses estudos sejam incentivados e que seja
dado mais apoio e ampla divulgação aos mesmos, para que a população humana
possa entendê-los com mais clareza.
Referências
●
MAROJA, Rodrigo
Cavalcante e Rodrigo. Animais: eles também têm cultura. Eles também têm
cultura. 2018. Disponível em:
https://super.abril.com.br/ciencia/animais-eles-tambem-tem-cultura/. Acesso em:
11 ago. 2020.
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VOGT, C. Cultura Animal.
Com Ciência. 2011. Disponível em:
<http://www.comciencia.br/comciencia/handler.php?section=8&edicao=73>.
Acesso em: 12 ago 2020.
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Acesso em: 11 ago. 2020.
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Referência:
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https://ciencia.estadao.com.br/noticias/geral,corvos-utilizam-a-memoria-para-fabricar-e-adaptar-ferramentas-diz-estudo,70002374070.
Acesso em: 12 ago. 2020.
●
LEVY, Sharon. The Cultural Cetacean. 2003. Disponível em:
https://www.nwf.org/Magazines/National-Wildlife/2003/The-Cultural-Cetacean.
Acesso em: 13 ago. 2020.
● RAPCHAN, Eliane
Sebeika; NEVES, Walter Alves. Primatologia,
culturas não humanas e novas alteridades. Scientiae Studia, [S.L.], v.
12, n. 2, p. 309-329, jun. 2014. FapUNIFESP (SciELO).
http://dx.doi.org/10.1590/s1678-31662014000200005.
●
VAN SCHAIK, Carel P.; DEANER, Robert O.; MERRILL,
Michelle Y.. The conditions for tool use in primates: implications for the
evolution of material culture. Journal Of Human Evolution, [S.L.], v. 36, n. 6,
p. 719-741, jun. 1999. Elsevier BV.
http://dx.doi.org/10.1006/jhev.1999.0304
●
CHANTEK, the first orangutan person. Realização de Tedx. Chattanooga: Youtube, 2014. Son.,
color. Legendado. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=q2pisrdO2TQ.
Acesso em: 11 ago. 2020.
●
POOLE, Joyce. Coming age with Elephants: a memoir. Nova York: Hyperion, 1996. Disponível em:
https://archive.org/details/isbn_9780786860951. Acesso em: 13 ago. 2020.
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